Thursday, January 22, 2004

Que o governo petista está fazendo a maior mudança de cargos e postos estatais na história do Brasil desde a Ditadura Militar, todo mundo sabe.

Que a cada troca de governo, colocações sejam remanejadas para que se acomode gente “de confiança”, é coisa que acontece sempre e em qualquer governo.

Mas que até as vagas numa fila de espera de transplantes de medula estejam sendo alteradas tendo em vista interesses políticos e dando preferência a quem tem pistolão, isso já é demais!

Mas... Isso é Brasil. E isso é o Brasil de São Lula.

O Instituto Nacional do Câncer, sediado na Praça da Cruz Vermelha no centro velho do Rio, é um lugar que eu não desejo que ninguém um dia venha a conhecer. Eu, entretanto, conheço-o muito bem. Por dez anos de minha vida, o INCa fez parte de minha vida e de meu cotidiano. É uma história que um dia ainda contarei aqui, em pormenores. Mas nos dez anos decorridos entre 1991 e 2001, eu fui testemunha ocular da transformação daquele hospital.

Ao entrar lá pela primeira vez, me deparei com um retrato típico da rede hospitalar pública brasileira. Baratas passeando céleres pelas paredes, corredores e salas lúgubres, mofados, destruídos, equipamento inutilizado, utensílios depredados... Tudo à volta só contribuía para piorar a agonia dos que lá estavam internados.

Lembro-me de uma enfermaria do setor de cabeça e pescoço onde havia uma parede, onde deveria haver uma pia, em que esta havia se perdido e só restara um buraco fétido, donde vazava água incessantemente. A umidade se espalhava pela sala e na parede esburacada crescia limo e o cheiro de mofo, misturado ao natural odor de éter dos hospitais fazia o ambiente insuportável.

Essa situação duraria mais um tempo, até os idos de 1994 ou 95. Foi em 94, agora me recordo bem, que assumiu a presidência do INCa o Dr. Jacob Kliegerman, já notório por ser uma sumidade na área da oncologia.

Foram muitos anos de obras, que modificaram todos os ambientes do hospital. Onde antes havia corredores cinzentos e opressores, surgiram ambientes claros, limpos e funcionais. Mais do que uma simples maquiagem, as obras que o Dr. Kliegerman levou adiante em sua administração deram dignidade ao INCa e aos que lá padeciam.

Quem hoje lá entra, vê um hospital que nada deve a qualquer nosocômio (eu sabia que um dia teria oportunidade de usar essa palavra!) particular. Difícil crer que se está num hospital da rede pública.

Mas se hoje o INCa pode orgulhar-se de oferecer um ambiente digno, há algo ali dentro que obra nenhuma pode ocultar. O padecimento dos que sofrem de câncer e de seus familiares. Perco a conta quando tento me lembrar do número de pessoas que conheci ali dentro e, que em uma semana passavam de um aparente estado de normalidade para uma morte horrenda. De alguns, eu soube dos destinos. Outros simplesmente sumiam e só restava especular se aquela pessoa tivera alta ou se seu sofrimento cessara com a morte. Também era bastante incômodo ter de passar pelos setores onde havia uma maior concentração de gente mutilada, com partes de seus corpos horrivelmente amputadas ou deformadas, num verdadeiro circo de horrores.

Por ser um hospital de referência, o INCa recebe gente de todas as classes. Mas os pobres são a imensa maioria dos internados. Eles vêm de longe, em Kombis de prefeituras de cidades miseráveis e longínquas, enfrentando às vezes algumas horas de desconfortável viagem. E ali dentro, a pobreza aparece ainda mais. A pobreza tem um cheiro, uma cor que a torna inconfundível. O INCa é um hospital de gente pobre de recursos e de esperanças.

Poucos casos ali têm alguma esperança. Um dos setores onde ainda se encontra esperança é o de leucemia, que foi justamente onde eu mais passei meu tempo.

A maior parte dos casos de leucemia se dá em crianças e adolescentes. Como todos os cânceres, a leucemia debilita e mata. Mas as crianças e jovens têm mais vida, têm uma esperança diferente, duradoura e que é fundamental na sobrevida. Quantas vezes me vi brincando com crianças completamente glabras por conta do tratamento com quimioterapia, que corriam por aqueles corredores carregando o porta-soro consigo? Ou não me compadeci com jovens que ali entravam fortes e bonitos e viram fenecer toda a sua vitalidade em meio ao tratamento? Uma em especial me tocou, que foi uma menina que deveria ter entre 18 e 22 anos de idade que lá entrou com belíssimos cabelos longos e louros. Na mesma semana ela já estava careca mas ainda conservava sua beleza. A vi ainda algumas vezes mas depois não soube mais dela. Não sei se seu tratamento teve sucesso e se ela teve oportunidade de ver seus lindos cabelos crescerem novamente. E prefiro até não saber, com o medo que eu tenho da resposta...

É por pensar em toda a experiência que tive dentro das paredes daquele hospital e por ter essa história tão particular com o INCa que a notícia, divulgada no meio do ano, de que o corpo médico do hospital estava em greve em protesto pelos desmandos que a nova administração estava cometendo, me doeu como um tapa na cara. Jamil Hadad, ex-prefeito do Rio e membro do PSB, havia nomeado a esposa de um deputado do PDT, Sami Jorge, como diretora de uma parte vital do funcionamento do hospital. Esta senhora, uma certa Zélia Abdulmacih, que em governos estaduais anteriores ocupou funções absolutamente díspares, fez tanta merda que prejudicou o fornecimento de remédios aos pacientes.

Remédios são vitais para qualquer tipo de paciente. Mas os remédios de um portador de câncer às vezes têm apenas uma função: Livra-los de uma dor insuportável. Estou falando de dores em que até a morfina é insuficiente para aplaca-las. E graças a um acordo fisiológico, para empregar uma vagabunda de uma esposa de deputado, os doentes do INCa ficaram sem seus remédios.

O escândalo caiu na imprensa e as providências de praxe foram tomadas. Fingiu-se uma rápida indignação e pronto.

Agora é o médico Daniel Tabak, outra sumidade em sua área (a de transplantes de medula óssea) que tem de pedir demissão para chamar a atenção das pessoas para o que estão fazendo com o INCa: Pacientes que estavam na fila do transplante perderam a vez por causa de gente apadrinhada do vice-presidente da República, o mesmo José Alencar que outro dia almoçava na casa de um vizinho meu.

O transplante de medula óssea é a única salvação para grande parte dos casos de leucemia. Um transplante de medula óssea talvez tenha salvo a vida e devolvido os cabelos àquela menina de que eu falava acima. A falta de uma medula compatível ou a demora no procedimento talvez a tenha matado.

O PT de São Lula, bem como toda a esquerda tupiniquim (onde cabem o Sr. vice-presidente da República, o PDT de Sami Jorge e esposa e o PSB de Jamil Hadad) passaram décadas martelando a cabeça de Deus e o mundo afirmando que eles eram os paladinos da moralidade e do anti-fisiologismo. Fossem os citados acima membros do PFL, estaríamos todos aqui balindo em coro algumas imprecações contra “esses notórios corruptos da direita”.

Mas eis-nos aqui a discutir direita e esquerda. Eis o governo aí a se preocupar em fichar turistas americanos que desembarcam em nossas praias e “salvar a honra nacional”. Onde eu encontrarei alguém que saiba o que é o INCa realmente além de mim e dos que lá estiveram e precisaram dele um dia? Teria alguém da nomenklatura petista que já precisou de um transplante de medula?

Essas são possibilidades de discussão bastante pertinentes, mas que não dizem nada a quem lá está nesse momento, e precisa de uma ampola de morfina ou de uma medula compatível e não tem.

Mas vai explicar para essa pessoa que ela não tem morfina e nem medula porque o governo precisa empregar a esposa de um deputado ou furar a fila para algum apadrinhado do vice-presidente?

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